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quarta-feira, 11 de março de 2009

MEMÓRIA DE UM PARLAMENTAR

COMUNISTA QUE NÃO SABIA LER

Quando tive conhecimento deste episódio relatado por Jerónimo de Sousa, resolvi de imediato colocá-lo no meu Blogue.
Fica como uma das histórias que coloco no quadro de honra da minha memória.
Em princípio pensei transcrevê-la neste blogue na secção "Viagens na História", dado ter a ver com um dos mais bonitos períodos da nossa história.
Mas o seu conteúdo é tão humano, tão bonito………tão poético, que achei que ficava melhor representado o seu conteúdo em “A Alma das Palavras”.
Leiam esta pérola de comovente dignidade, que só um povo humilde, sacrificado e explorado como o português pode produzir.

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Jerónimo de Sousa, ao entrar pela primeira vez no Palácio de São Bento, há precisamente 30 anos, não fazia a mínima ideia de "como era isso de ser deputado".

Quando o DN lhe propôs um regresso às memórias dessa época, o actual secretário-geral do PCP lembra a ruptura que se registou entre a velha Assembleia Nacional da ditadura e a Assembleia Constituinte que contribuiu decisivamente para firmar os alicerces do regime democrático............
"Vínhamos de uma assembleia fascista, com uma composição muito classista, onde um operário não tinha entrada."
Nesse mês de Junho de 1975, o contraste não podia ser maior até o PPD e o CDS exibiam operários na sua bancada.
Mas nenhum outro grupo parlamentar como o PCP tinha tantos "membros da classe trabalhadora", como se dizia na terminologia marxista, muito em uso na época.
Um desses operários, oriundo de Alpiarça, era António Malaquias Abalada - um operário agrícola já idoso que mal sabia ler ou escrever.
Ao fazer uma das suas primeiras intervenções no plenário, com um discurso escrito na mão, este deputado começou a ser alvo de chacota generalizada, bem perceptível em diversas bancadas da Constituinte.
Um episódio que indignou Jerónimo de Sousa.
Três décadas volvidas, o dirigente máximo do PCP guarda todos pormenores da cena, que reconstitui com visível emoção.
"Aconteceu num dia em que se discutia uma norma transitória que o PS e o PPD acabaram por incluir na Constituição da República.
Esta norma, na altura, permitiu a libertação de todos os pides.
Esse meu camarada António Abalada, que tinha passado pelas masmorras da PIDE, fez então uma intervenção, naturalmente sentida.
Mas lia de forma muito deficiente - gaguejante, soletrando mal as palavras.
A Assembleia Constituinte desatou numas gargalhadas visivelmente humilhantes", recorda Jerónimo de Sousa.
Então esse meu camarada largou o papel que tinha na mão e falou assim:
"Estão-se a rir de mim porquê? Por eu não saber ler?
Pois: é que eu, aos sete anos, já andava a guardar gado; aos 17, fui preso pela PIDE.
E quando fui preso não me perguntaram se eu era do CDS ou do PS ou do PPD.
Perguntaram, isso sim, se eu era do Partido [Comunista Português].
E foram os meus camaradas intelectuais deste partido que me ensinaram as poucas letras que eu conheço'."
Aquelas frases espontâneas, proferidas como reacção à deselegância dos restantes deputados, constituíram uma autêntica lição de vida.
"A verdade é que o hemiciclo emudeceu.
E o camarada Abalada lá continuou a ler - manifestamente mal, como já fizera anteriormente - a sua intervenção sobre a tal norma transitória", recorda Jerónimo de Sousa, também ele com raízes operárias.
Mesmo com tantos anos decorridos, a emoção é visível na face do secretário-geral comunista ao desfiar esta memória dos seus tempos de deputado constituinte.
"Aquele foi um dos momentos mais impressionantes que eu testemunhei no hemiciclo de São Bento, no sentido de classe. E foi também uma lição para a arrogância intelectual de muitos deputados", conclui Jerónimo de Sousa."

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