AINDA A CARIDADE
VERSUS SOLIDARIEDADE
VERSUS SOLIDARIEDADE
Ouvimos esta manhã na Antena Um, uma entrevista ao padre José Miguel Pereira reitor do Seminário dos Olivais, argumentar
em favor de Isabel Jonet, do “Banco Alimentar contra a fome” sobre a questão da preferência da referida
dama, pela caridade em detrimento da solidariedade.
Isto no dia seguinte
a ter lido um maravilhoso texto da Mário Carvalho sobre este tema e recordado a
grande intervenção de Pacheco Pereira na “Quadratura do Círculo”, onde arrasou Lopo
Xavier, que nesse programa, se colocou na posição de defensor da dita senhora.
Confessamos que foi
um dos melhores debates a que assistimos e como tal, para testemunharem um grande e raro momento de televisão, resolvemos publicá-lo neste Blogue, porque
do ponto de vista humano e sociológico, fica tudo muito claro!!!.
Porque queremos que também possa
desfrutar do mesmo prazer intelectual que nos foi dado viver, com a peça de Mário de Carvalho sobre o mesmo tema, vamos aqui deixar reproduzidos, tanto o vídeo como o texto literário, para seu prazer e nossa memória.
TEXTO DE MÁRIO DE CARVALHO
Avé Portugal mendigo. Senhora da Linha em
maré de pobres
1.A esmola. O
próprio vocábulo hoje incomoda. Tem travos de aviltamento, atraso e rebaixo. No
século XXI, há quem queira voltar à prática infamante da esmola! As saudades da
Idade-Média tardam ao esconjuro. Mas o lastro da miséria não é aura que eleve aos
céus. É chumbo que arrasta para as regiões inferiores, onde, segundo as
mitologias, se arde.
Vem-me
primeiro à ideia o orador Rufino de «Os Maias». É o meu espírito faceto. Mas eu
não consigo ser sempre faceto. A memória não deixa. Acode-me o mal-estar de miúdo
quando um padre me levou num grupo a distribuir embrulhos por tugúrios de
Alfama. Para que os meninos do liceu soubessem como vivia a pobreza, explicou.
Eu não precisava que me lembrassem como vivia a pobreza. Sabia e sabia bem.
Tinha brincado com miúdos rotos e descalços que usavam carrinhos feitos de
arame como agora em África. Tinha entrado em casas de chão batido em que não
havia nem uma cadeira. Tinha visto os pedintes chegarem aos grupos,
esfarrapados, longas barbas, bornal ao ombro, por entre os arremessos dos cães,
e ficarem depois às sobras debaixo dum chaparro. Tinha espreitado a guarda a
cavalo, de chapéu colonial, a patrulhar os campos e a assegurar-se de que tudo
estava em ordem: «Assine aí, lavradora!». Tudo estava em ordem. A ordem da miséria
e da degradação. A ordem natural das coisas. Pobres sempre haveria. Porque sim.
À cautela, aquelas «Mauser» em bandoleira eram garantes.
Isto
vem, claro, a propósito da doutora Maria Isabel Jonet. E começou a ser escrito
após uma senhora deputada ter entrado em guincharia num programa de televisão
conduzido por uma daquelas figuras curvadas que nos vêm abrir uma porta
rangente, de candelabro na mão, olho torvo e beiçola descaída, quando o nosso
carro sem gasolina parou numa charneca desértica, entre nevoeiros, sem haver
mais que uma mansão decrépita.
A
deputada estridulou acusações contra «campanhas» e destemperou insultos. Mal
defendida ficou a ré Isabel. Mal vista a parlamentar. Diminuídos todos.
Suscitado este texto.
2.Eu até nem desgosto
especialmente da Doutora Jonet. E não se trata de nenhuma simpatia atávica
pelos simples. Acho que é mais defeito meu: uma dificuldade em antipatizar, da
natureza daquelas portas perras que, por mais que se tente, não fecham. Aliás,
nomeio a pessoa apenas para que não interpretem a omissão como pejorativa.
A
actividade caridosa dos ricos também não me causa, em si, especial
contrariedade. Cuidar dos outros nunca fez mal a ninguém. Enquanto certa gente
se entretém com a caridade não está a fazer coisas piores: intrigas,
festarolas, ostentações, frioleiras, chazinhos. E, em certos casos,
malfeitorias.
Vou
passar de alto as últimas declarações da respeitável senhora. Dizem-me que se
tem desdobrado em entrevistas. E mais insinuam: que não se trata de uma bem
organizada manobra de influências, abusando de subalternidades nos jornais, mas
de coisa pior: vontade pérfida, por parte da imprensa, de a surpreender, mais
uma vez, em inconveniências. Eu nunca entraria nem num jogo, nem noutro. De
maneira que recorro à minha memória, que é fraca, pedindo desde logo que me
corrijam, se estiver equivocado:
--
Aqui há tempos, a um propósito que tinha a ver com a entreajuda na família,
afirmou convictamente que os filhos deviam ajudar «a cortar a relva»;
-
Noutra ocasião, referindo-se aos jovens dos seus relacionamentos disse, por
palavras suas, que esses eram as «elites» que iriam estar à frente deste país.
--
Na véspera das últimas eleições legislativas (em pleno período de reflexão)
convidada pelo espertíssimo Doutor Rebelo de Sousa que a olhava com o amarotado
deleite de quem acaba de fazer batota na «vermelhinha», a senhora debitou, item
a item, dogma a dogma, todo (mas todo) o papagueio da cartilha que tem vindo a
desgraçar este país.
A
«relva» ainda passa. É a consequência de se viver num mundo fechado. Mas sendo
uma pessoa tão viajada… Não interessa. Já conheci gente que andou pelos sítios
mais desvairados e não viu nada. Pode ir-se e voltar-se da Conchinchina setenta
vezes sem sair de intramuros.
O
considerar que certo tipo de jovens está destinado a governar é uma concepção
classista, capciosa, e até ofensiva para a esmagadora maioria da juventude. Mas
temos de reconhecer que há falhas de educação que nos acompanham toda a vida. O
saisons, o chateaux…
Já
fazer propaganda em dias de defeso é muito mais grave. Mas creio que podemos atribuir
as culpas a quem a convidou para aquele programa, naquela precisa noite,
sabendo de antemão que a senhora não poderia deixar de dizer as inanidades que
lhe estão na massa do sangue. Com tal habilidade e torsão de manobra não admira
que o Professor Rebelo de Sousa acabe, tanta vez, por se rasteirar a si
próprio.
Surpreende-me
é que as pessoas que, outro dia, se indignaram com a questão dos bifes e das
torneiras (parece ter havido, entretanto, outra pérola sobre a temperatura do
dueto solidariedade/caridade) não deram nem pelo corte da relva, nem pela
vocação oligárquica, nem pela violação encapotada da lei eleitoral. Não se
tratou de uma mera impertinência de uma senhora num tropeço de infelicidade.
Por trás há um pensamento. Uma ideologia. E há muita gente (se calhar muitos
dos vociferantes) que tem consentido nessa ideologia que faz passar por
«normal» uma concepção do mundo arcaizante.
3.No país em que eu
nasci, quem mandava eram os ricos que encarregavam das tarefas sujas uns
professores de Coimbra e uns militares que por sua vez comandavam legiões de
desgraçados. Durante gerações, houve pessoas, em número mínimo, que
beneficiaram duma vida remansosa dentro dum circuito fechado e protegido. A sua
insensibilidade social era completa. Nem se apercebiam de que em volta havia
pobre gente maltratada, humilhada, presa, espancada. Se lhe chegassem rumores
(através das criadas, por exemplo) considerariam que era natural. O imperfeito
mundo funcionava assim mesmo, éramos «um país pobre», resignassem-se. E até
encontravam uma especificidade nacional justificativa do nosso fascismo
doméstico. Era desumano? Paciência. Havia oratórios, terços, missas, e em
calhando cilícios e bodos aos pobres. A desumanidade redimia-se nos ritos.
De
repente (surpresa para eles) caiu-lhes uma revolução em cima, transtornou-lhe
os planos, estremeceu-lhes as carreiras, desmarcou-lhes as festas. O que se
chama, na sabedoria popular «uma patada no formigueiro».
Nunca
perdoaram esses momentos – fugazes - de perturbação das pequenas vidas. Não
tardariam, eles e seus descendentes, a ser repostos nos lugares de antes (em
circunstâncias e conluios que não importa agora rever) mas num quadro jurídico
e institucional diverso: a democracia. Essa incomodidade áspera, própria de
intelectuais irrealistas, operários transviados e outros lunáticos, mostrava-se
demasiado imponente para se derrubar de golpe? Dissimulasse-se. Corroesse-se
por dentro. Desviassem-se os recursos do Estado. Praticasse-se uma permanente
cleptofilia. E, dentada a dentada, sangria a sangria, desgaste a desgaste,
chegou o momento que julgaram oportuno para rasgarem as fantasias e voltarem
aos plenos poderes de antes, a coberto dos seus criados. A vingança serve-se
fria. Há um nome francês que se usa no caso: «revanche».
É deste
movimento que a doutora Maria Isabel Jonet tem sido uma porta-voz, no seu
estilo muito próprio. E só agora muita gente nota. Porque vinha tudo no embalo
duma quotidiana propaganda que dia a dia, linha a linha, imagem a imagem,
inculcava nos espíritos o acatamento dum mundo de diferenças e de
desigualdades. O mundo em que a doutora Jonet – e outras pessoas do mesmo
entendimento – se sentem realizadas.
Quando
por todo o lado se apregoa – com grande favor jornalístico – a ideia de que o
Engº Zulmiro não deve pagar o mesmo nos transportes que um reformado pobre,
quando se dispõem contrapartidas distintas, conforme os escalões, nos cuidados
de saúde, quando se estabelecem diferenças de tratamento ao sabor dos
rendimentos declarados não é a justiça que estão a praticar. Muito ao
contrário. É a normalização e a institucionalização das desigualdades. É um
desenho do mundo em que a pobreza (a dos outros) se aceita como fatalidade. A
restauração do despenhado mundo dos pobres, como eu o conheci.
Os ricos
já têm o poder económico neste país. Asseguraram, através dos seus valetes, o
poder político; ainda querem mais: exercer o poder pessoal, sobre as vidas de
cada um, usando, ou sendo transmissários, do instrumento da esmola. É a
imposição da desigualdade como ordem natural das coisas, como uma grelha
implacável cravada na sociedade portuguesa. A esmola, neste quadro, faz lembrar
o cajado do guardador de rebanhos. Pobres para serem mandados, distribuídos,
orquestrados, mordidos, concentrados, castigados, benzidos.
E isso
é bem diferente de praticar a caridade, nas falhas e interstícios do chamado
Estado social. Não há aqui expressão de amor ao próximo. Não se trata dos casos
(meritórios) em que se descarregam consciências, sem que uma mão saiba o que
faz a outra. É, ao contrário, uma fórmula institucional de violência. Esse mal,
sistémico e obsidiante, não se deixa compensar com os maquinismos do bem-fazer
de uma indústria caridosa. Por um lado fabricam-se pobres, através dum sistema
social iníquo. Por outro lado, esmolam-se os pobres que se criaram. É
repulsivo? É, sim, e estão em campo as mesmas famílias (descendentes ou afins)
praticantes dos bodos dos tempos do fascismo.
4.Falemos agora de
decência. É um conceito que não tem que ver com o sapatinho de vela no verão, o
esgoleiramento da camisinha branca ao fim-de-semana, os gestos miúdos do
chazinho ou a mãozinha no volante do Porshe, nem com os objectos «de marca» que
irmanam paradoxalmente os extremos do espectro social. Vadios de cima e vadios
de baixo (Eça confrontava-os no Chiado) entusiasmam-se pelos mesmos efeitos.
Apuradas as razões, hão-de encontrar-se num subterrâneo fio de ligação, mais ou
menos disfarçado: frivolidade iletrada. Aos de cima, chamou a doutora Isabel
Jonet «elite», por manifesto equívoco. Como se no país não existissem
cientistas, arquitectos, engenheiros, artistas, professores, médicos,
advogados, e tudo tivesse que rasar-se pela bitola de alguns economistas,
banqueiros, «gestores» e ociosos.
Um dos
preceitos estruturantes que escora o nosso ordenamento jurídico e funda a
confiança nos comportamentos eticamente regulados vem do direito romano e das
ancestrais práticas de boa-fé e exprime-se no brocardo: «pacta sunt servanda»,
ou seja, os compromissos são para se cumprirem. E sobre isto não há expedientes
de contabilistas, não há casuísticas habilidosas, não há reservas mentais, não
há passes de futebolista atendíveis. Há uma obrigação? Cumpra-se.
Mas a
plutocracia que tem mandado nos destinos dos portugueses transportou para o Estado
os seus pequenos hábitos de manobrismo, de expedientes, habilidades, truques,
quando não de falcatrua, que retiraram à entidade a sua natureza de «pessoa de
Bem». Ser «de bem» é uma noção que está fora do alcance de quem apenas acha
meritórios o lucro e as negociatas. Coisa abstracta e «intelectual», própria de
«otários» para utilizar a linguagem das cadeias que acaba por não ser muito
diferente, numa perspectiva de extremos tangenciais.
É assim
que vemos governantes a colocarem o Estado Português na situação de violar os
compromissos tomados para com os seus trabalhadores e aposentados. A ignorar
prazos contratuais. A incumprir as promessas juradas perante o seu eleitorado.
A fazer negaças à própria constituição. De modo tão flagrante e provocatório que
lhes fez perder a legitimidade formal que detinham à partida.
Ora
quem se coloca fora da lei está a pedir um tratamento fora da lei. Mas eles não
estão apenas a pedir pedradas. Estão a pedir o confisco dos seus relvados, dos
seus automóveis, das suas casas, das suas piscinas, dos seus valores
mobiliários, dos seus quadros, dos seus cavalos, das suas jóias e luxos e a
supressão de todas as mordomias. Não que isso seja economicamente relevante.
Mas significa a reposição de um mínimo de decoro.
Ser-lhes-á
então tarde para perceber que numa situação de ruptura a própria polícia mudará
de campo. Certos jornalistas descobrirão escrúpulos éticos insuspeitados.
Economistas e contabilistas virão dizer que foram mal interpretados e nunca
proferiram aquelas coisas. Irromperão múltiplos vira-casacas e desertores da
tirania de mercado, dispostos a pisar a livralhada de Milton Friedman e a
cuspir no retrato emoldurado da Senhora Thatcher.
E lá
terão as pessoas de bom senso de arriscar a reputação e a pele para evitar que
se maltratem umas dúzias de plutocratas amedrontados e seus serviçais de
fatinho, rojados pelo chão, de folha de cálculo à mostra.
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